Em julho de 2016 um novo projeto foi listado aqui na plataforma Cidadania 2.0: o Mudamos. Foi descrito como “uma plataforma online, destinada ao público brasileiro, que dá aos cidadãos a oportunidade de se expressarem com liberdade e segurança sobre temas considerados importantes e de interesse público”. Esse projeto, nascido em 2014, deu origem a dois anos de debates para a sociedade brasileira, sobre a Reforma Política brasileira e também a reforma da Segurança Pública.
No entanto, e como diz Marco Konopacki do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), a equipa percebeu que era preciso ir mais além. E foi assim que nasceu o Mudamos+, uma app de assinaturas eletrónicas para propostas de leis de iniciativa popular.
Segue-se uma entrevista que fiz ao Marco sobre o Mudamos+, depois de o ter conhecido recentemente na conferência TICTeC 2018 realizada em Lisboa.
Marco, qual o problema que o Mudamos+ está a tentar resolver?
Desde a nova constituição brasileira, promulgada em 1988, existe o direito de qualquer cidadão apresentar iniciativas de lei, desde que recolha um número mínimo de assinaturas. O problema é que esse número para uma lei nacional é de 1,5 milhão de assinaturas (1% do eleitorado) e para recolher essas assinaturas de papel, são necessários 2 toneladas de papel assinado por pessoas em 5 estados brasileiros diferentes.
Pelo Brasil ser um país de dimensões continentais, era necessário criar outra forma de tornar esse direito cidadão efetivo. Por isso, aplicamos de forma criativa novas tecnologias de criptografia e segurança para produzir uma assinatura eletrônica que poderia ser aceita pelos órgãos públicos na apresentação de leis de iniciativa popular. Qualquer cidadão brasileiro pode assinar projetos de lei de iniciativa popular usando o Mudamos+, um aplicativo de celular na palma da sua mão.
Esta app recorre à tecnologia de blockchain para evitar fraudes no processo. Podes explicar de que forma é que o blockchain pode ajudar?
Antes de responder essa pergunta, é importante dizer que é necessário pensar blockchain mais como um conceito, do que uma tecnologia única. Sendo um conceito, existem diferentes tecnologias que a tornam possível.
No Mudamos+ é possível aceder às compilações das assinaturas já recebidas em suporte de um projeto
O Mudamos utiliza uma dessas tecnologias na geração das assinaturas. Cada usuários registrado no Mudamos tem uma chave privada única e exclusiva que só ele tem acesso e que só está contida no seu celular. Nem mesmo o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS) tem acesso essa chave.
Cada assinatura gerada pelo Mudamos passa por um processo chamado hashing, com essa assinatura. Isso permite que a assinatura seja criptografada, mas ao mesmo tempo, qualquer pessoa pode verificar se aquela assinatura é autêntica usando uma chave pública de verificação.
Somada a essa estratégia de segurança das assinaturas, o Mudamos utiliza blockchains públicas para tornar o processo rastreável. Semanalmente o Mudamos registra as listas de assinaturas na blockchain para tornar aquela informação imutável. Assim, qualquer usuário ou pessoa interessada na coleta de assinaturas pode acompanhar a evolução da campanha, saber quantas assinaturas a campanha recebeu em diferentes momentos do tempo. Essa informação não pode ser manipulada, por estar registrada na blockchain, o que dá uma transparência enorme, gerando confiança e lisura ao processo.
Quais as desvantagens e riscos de utilizar blockchain?
É importante não achar que blockchain deve ser utilizado para tudo e em todo momento. O que costumo recomendar a pessoas que estão desenhando sistemas informáticos cívicos é se fazer a seguinte pergunta: manter a informação centralizada em só uma organização pode gerar desequilíbrios de poder onde o sistema irá atuar e, assim, produzir desconfiança entre os participantes? Compartilhar como essa informação é armazenada entre diferentes atores do ambiente em que o sistema irá funcionar pode tornar o sistema como um todo mais confiável?
Basicamente temos que pensar que em muitas situações informação é poder, e atribuir poder de mais a um só ator pode gerar desequilíbrios. No caso de auditoria de contas públicas, por exemplo, centralizar nas mãos do Estado, um dos principais interessados e produtor daquela informação, pode gerar desconfiança na sociedade civil que fiscaliza a atuação do Estado. Nesse caso, se as contas públicas estiverem registradas em bancos de dados públicos em blockchain, essa informação passa de centralizada para descentralizada em que cada interessado pode ter uma cópia e certificar aquela informação quando for necessária.
Usar a blockchain em qualquer aplicação sem ter isso em mente pode gerar desvantagens e riscos que podem inviabilizar as aplicações. Blockchain ainda é uma tecnologia cara e de difícil implementação. Existem poucos profissionais com total domínio sobre ela. Utilizar a blockchain como soluções de todos os problema podem produzir o efeito contrário para o qual ela se destina, a população por não entender o real motivo pelo qual ela foi utilizada, pode criar desconfianças e rechaçar novos sistemas não pelo que eles fazem, mas como eles fazem de maneira incorreta.
Sei que tu e a tua equipa têm pensado em formas de reaproveitar o código criado para este projeto no sentido de criar novas aplicações que possam ser rentabilizadas para cobrir os custos associados ao Mudamos+. Contudo, vejo que vocês publicaram os algoritmos do Mudamos+. O que vos motiva a fazer esta partilha para a comunidade? Não receiam que ela inviabilize a entrada de receita para o financiamento da vossa atividade?
O Mudamos é muito mais uma forma de fazer do que querer se estabelecer como a única forma de fazer algo. O financiamento do ITS vem pelo conhecimento que produzimos fortalecendo essas experiências. Quando se pensa a tecnologia aberta, abre-se a possibilidade que mais pessoas e atores participem do processo criando massa crítica para sua adoção. Sem isso, talvez o Mudamos não tivesse se tornado tão popular. Nós acreditamos muito na inovação aberta, num mundo que o conhecimento não seja exclusivo, mas compartilhado.
Sentes que o blockchain pode vir a desempenhar um papel importante nos atuais processos democráticos? Em quais especificamente? Podes dar exemplos?
A Democracia é um sistema político que deve estar em constante reinvenção crítica. Se pensarmos atualmente um dos caminhos para a Democracia se reinventar é incluir cada vez mais cidadãos nas decisões do Estado, o blockchain pode desempenhar um papel muito importante na construção de um Estado que compartilha direitos e deveres com a sua população fortalecendo laços de confiança.
Com blockchain, por exemplo, novas formas de se pensar a Democracia podem estar associadas ao compartilhamento de incentivos para atividade cívica, com a geração de pequenos ativos cívicos que as pessoas podem trocar entre si. Vejamos o exemplo o projeto Adote uma Boca de Água (Adopt a Hydrant), lá as pessoas doam seu tempo para tirar a neve das bocas d’água para evitar colisões e assim tornar a cidade mais segura. A origem do projeto é pensá-lo como um jogo, mas imagine se houvesse um banco de dados comum que registrasse as contribuições dos cidadãos e que isso permitisse gerar ativos que pudessem ser utilizados em outros serviços públicos, como o desconto numa passagem de ônibus. O blockchain para inovação pública pode criar redes de troca complexas que não poderiam ser imaginadas sem ela, pois a confiança é o principal valor garantido pela tecnologia nessas redes complexas.
Na medida em que as pessoas tenham oportunidade de ampliar sua atividade cívica e terem incentivos reais a fazê-lo, podemos reverter a apatia política que dominam diversas Democracias “clássicas”. Eu acho que ainda teremos muitas transformações com o apoio da tecnologia. A política é o último limiar da digitalização da vida.
Na apresentação que fizeste no Festival Política 2018, falaste também do projeto Pegabot. O que nos podes dizer sobre esse projeto? Quais as motivações e de que forma esperam que possa ser usado?
O Pegabot é um projeto para dar mais transparência no uso da tecnologia por atores públicos identificando se perfis de redes sociais são bots (robôs) ou não. Na medida em que novas formas de uso das mídias e comunicação surgem, existe um tempo para que as pessoas entendam de fato como as coisas funcionam.
O Pegabot funciona como um instrumento de media literacy, para que as pessoas se tornem mais preparadas a entenderem e se relacionarem com a mídia, considerando essas novas variáveis. Para o debate eleitoral neste ano no Brasil, esperamos que os eleitores tenham uma visão crítica de como seus candidatos estão usando a tecnologia, e esperamos que o Pegabot seja uma das ferramentas a apoiar essas ações.
O Mudamos+ usa uma tecnologia que está na moda: o blockchain. O Pegabot recorre a uma outra tecnologia de que muito se fala atualmente: os bots e, consequentemente, o machine learning. Essa aposta em tecnologias tão recentes advém da vertente de pesquisa da ITS Rio que quer pôr essas tecnologias à prova no contexto da democracia?
Sim, a área da qual eu sou coordenador, Democracia e Tecnologia, pensa e experimenta tecnologias de ponta para serem aplicadas ao contexto político. Acreditamos que só na medida em que consigamos experimentar e compartilhar esses experimentos é que podemos encontrar novos usos para a tecnologia, assim como evitar que ela se torne uma ameaça quando utilizada de forma negativa.
Que projetos inspiram o vosso trabalho?
Essa é uma pergunta difícil, acho difícil citar um, ou mesmo alguns projetos. Acho que o que mais inspira é o poder empreendedor de coletivos e startups em quererem experimentar a tecnologia para novos usos e, com isso, transformar como as populações lidam com a tecnologia.
Há alguns anos, era difícil pensar que teríamos aparelhos de computação móvel tão acessíveis e que isso iria transformar como as pessoas lidam com situações cotidianas, como pedir um carro, assinar um projeto de lei ou emitir uma opinião política. Assim, o que mais me inspira é poder saber que cada vez mais pessoas se põem a pensar em usar a tecnologia para aproximar pessoas e ajudá-las a transformar suas próprias realidades.
Quais os próximos projetos para a tua equipa?
O grande projeto desse ano estão sendo as eleições gerais no Brasil, então seguiremos evoluindo os projetos que estamos executando e também produzindo estudos e cursos sobre o assunto. Em junho realizaremos um curso voltado para Fake News, Eleições e Internet e estamos bem empolgados.
Queremos também investir em tecnologias sociais e metodologias offline, como é o caso da Virada Legislativa, que é uma metodologia para desmistificar a escrita de leis e empoderar a população para construir suas próprias leis de forma colaborativa.
Original post: https://cidadania20.com/opinioes/mudando-a-confianca-dos-cidadaos-nos-processos-democraticos-atraves-da-tecnologia/