Quando o medo do novo coronavírus já pairava sobre os países ocidentais, eu estava junto com outros amigos, Humphrey fellows, na cidade de Nova York. Estávamos com uma agenda de reuniões com membros das Nações Unidas e outras organizações. Participamos de uma conferência de imprensa na qual o assessor do secretário-geral da ONU anunciava medidas sobre a grande crise que explodiria uma semana depois. Naquele momento, nossos sonhos nos impulsionavam para uma energia de celebração e comunhão, e não sabíamos que nossas vidas mudariam drástica e repentinamente dali a alguns dias. No jantar com todos os presentes, celebrei aquele momento como se fosse nosso último, sem saber que o seria. Eu ainda tive a sorte de assistir, com meu amigo coreano Seungwan, ao musical The Lion King. A música The Circle of Life nunca me tocou tão fundo.
Uma dura decisão
No dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde declarava o novo coronavírus como uma pandemia mundial, estabelecendo diretrizes para os países do mundo lutarem contra aquela ameaça. Alguns dias depois, começaram os fechamentos de fronteiras. Observando tudo aquilo incrédulo, com minha família preocupada por eu estar fora do Brasil, eu não podia acreditar em como toda a infraestrutura mundial poderia ser desconectada como se puxa o cabo de uma tomada. Alguns colegas de programa decidiram voltar para casa em meio às medidas de restrição que estavam sendo impostas. Ieva, da Letônia, tentou, mas disse que já não haviam voos. Na tentativa de ajudá-la, mandei uma lista de voos do Skyscanner, alegando que as coisas estavam normais, sem saber que aquilo se tratava do cache do sistema. Aqueles voos já não estavam mais em operação. Ela ainda está nos Estados Unidos, tentando voltar para casa.
Quando se opta por viver em outro país, sabe-se que será necessário estar longe da família por um tempo. No meu caso, eu passei alguns meses longe da Chris, minha esposa, enquanto ela ia e vinha para passar temporadas comigo. Apesar de ser difícil, imaginar que se está num mundo interconectado, com fácil acesso a ferramentas de comunicação e transporte, torna a distância menos dolorosa. Tanto Chris como eu sabíamos que, se a saudade apertasse e as ligações de WhatsApp não bastassem, poderíamos montar no primeiro avião com destino à felicidade (que coisa brega!).
Ao lembrarmos a Sociedade em Rede de Castells, entendemos que a globalização, e as transformações sociais e econômicas decorrentes dela, só foram possíveis por conta de dois elementos estruturais indivisíveis: o surgimento e a popularização da internet, e o aprimoramento dos meios de transporte. Com o barateamento dos voos comerciais, mais e mais pessoas podem se encontrar. Com a internet, essas conexões podem perdurar mesmo que em diferentes locais do planeta. A quebra de um desses pilares criou repentinamente uma globalização manca. Como uma dança das cadeiras global, em que quem se conectou se conectou, quem não se conectou não se conecta mais. Se há algo de bom em se tirar disso é que as nossas conexões nunca foram tão valiosas. Ter alguém com quem falar nunca foi tão importante.
Com o racionamento cada vez maior dos voos para o Brasil, a sensação de acolhimento que eu tinha, mesmo distante da minha família, tornou-se numa sensação de isolamento profunda, maior até que a imposta pela quarentena. A privação de encontrar amigos da mesma cidade agravou ainda mais essa sensação. O drama de estar numa cidade que não é sua, longe de casa, dependendo de um sistema de saúde excludente, martelava minha cabeça constantemente. Apesar de querer concluir o programa conforme havia planejado, percebi que, ao ser puxado o cabo da tomada da globalização, o mundo não seria mais o mesmo a partir daquele momento. Junto com minha sensação de luto pelos planos que nunca mais seriam realizados, comecei a lutar pelo meu retorno para casa.
A jornada de volta para casa
Eu vinha monitorando a frequência de voos para o Brasil. No dia 28 de março, percebi que a Delta, a companhia que mantinha a frequência mais confiável, fez seu último voo para o Rio de Janeiro. Os que partiriam de Atlanta para o Galeão estavam suspensos por tempo indeterminado. Todas as outras companhias já haviam cessado o transporte de pessoas para o Rio, e a constatação de que eu não poderia voltar para casa a hora que eu quisesse me bateu como uma bomba. Depois disso, soube que a Delta faria seu último voo para o Brasil no dia 1 de abril, com destino a São Paulo.
Mesmo com tantos compromissos, contas a pagar nos Estados Unidos, casa para encerrar, decidi voltar. Monitorando insistentemente a condição dos voos para o Brasil, consegui uma passagem para esse último da Delta, para Guarulhos. Eu agora tinha três dias para fazer as malas e assegurar todos os compromissos. Meu lado racional tomou conta de mim e comecei a empacotar tudo, fazer todas as ligações que precisava e me preparar para uma jornada de milhares de quilômetros em meio a uma pandemia.
A racionalidade fria só foi derrubada quando os amigos queridos de programa vieram um a um até minha casa para se despedir. Sem poder abraçar cada um deles, vinham com algum gesto de carinho, um cartão, um souvenir de seus países ou algo prático para me proteger na jornada, como máscaras N95. Foram as despedidas mais estranhas da minha vida. A contradição de estar tão perto e felizes naquele jantar em Nova York com a ausência do abraço para uma despedida longa demonstra o quanto nossas vidas tinham mudado num estalar de dedos, em menos de um mês.
No meu último dia em Syracuse, precisei sair de casa para ir ao banco e aproveitei para me despedir da universidade. O cenário era o de uma cidade fantasma. Com as aulas da Syracuse University suspensas, não havia ninguém nas ruas ou no campus. Normalmente, deveriam estar circulando 20 mil alunos por onde passei. Perto da universidade, entrei em uma pequena loja de conveniência e me senti no próprio filme do Walking Dead. A loja estava deserta, enquanto um noticiário na TV fala da tragédia da cidade de Nova York. Um senhor por trás do balcão me atende enquanto o seu pastor alemão me fita concentrado. Ele havia montado uma barricada no seu balcão e o pastor alemão era seu sócio na defesa da loja. Não ficaria surpreso se tivesse visto um rifle, o qual com certeza deveria estar embaixo do balcão.
Dia 1 de abril meu voo saía à uma da tarde. Depois de lutar para encaixar tudo em duas malas grandes, mais uma porção de coisas penduradas no corpo, meu amigo Seungwan me levou ao aeroporto de Syracuse. Ele fez questão de estacionar o carro e ir ao guichê comigo. Na despedida, o único momento em que o protocolo de isolamento foi quebrado. Demos um abraço que me levou às lágrimas. Não é normal receber um abraço de um coreano, muito menos num momento de pandemia, mas era impossível não retribuir o carinho de amigo com o qual compartilhei tantas coisas boas nos últimos meses.
Para adequar o peso da minha bagagem, tive que tirar meu capacete da mala. Não bastasse toda a estranheza em usar máscara de proteção, agora eu também viajava de capacete. Proteção extra para o mundo que desabava sobre minha cabeça. Fui para o portão de embarque em um aeroporto deserto. Felizmente, meu voo não foi cancelado. Parti de Syracuse num dia ensolarado e quente, raro para essa época do ano. Esse tempo me fez lembrar do dia em que cheguei lá, também ensolarado e quente. O ciclo se fechou da mesma forma com que começou.
O visual mais estiloso que já vesti em viagens Syracuse quente e ensolarada, fora do costume
Ao chegar em Atlanta, o aeroporto de conexão para o Brasil, mais um choque. Um dos maiores aeroportos do mundo completamente deserto. Esperei lá por cinco horas. Como não sabia se haveria lugar aberto para comer, preparei um farnel para me acompanhar na viagem. Em Atlanta, a maioria dos restaurantes estavam fechados. Pedindo informações, descobri que alguns estavam abertos em uma das sete áreas de embarque que o aeroporto dispõe. Consegui almoçar ao som de um pianista, que tocava para ninguém naquela praça de alimentação vazia.
Meu voo para Guarulhos atrasou uma hora. Foi uma das esperas mais longas da minha vida. Nela, havia a tensão do voo ser cancelado e não haver mais opções no dia seguinte. Durante o voo, nem eu nem meu vizinho de fileira fomos ao toalete. Parecíamos os mais preocupados com o risco de contaminação. Usei a máscara que ganhei de um dos meus amigos durante todo o voo, só a retirando rapidamente para as refeições. Às oito da manhã do dia 2 de abril, eu tocava novamente o solo brasileiro.
A chegada
Ao chegar em Guarulhos, a primeira coisa a me incomodar foi a falta de alguma avaliação mais detalhada sobre o meu estado de saúde e por onde eu havia circulado. O procedimento de verificação dos passageiros foi um simples monitoramento de temperatura. Os passageiros não foram cadastrados para um futuro acompanhamento, e nenhum tipo de recomendação foi feita a eles. Eu, que já estava paranóico, fiquei ainda mais.
Em teoria, eu deveria voar para o Rio de Janeiro na noite daquele dia. A rota aérea mais congestionada do Brasil, naquele dia, tinha apenas dois voos, um pela manhã e outro de noite. Com medo de esperar o dia inteiro no aeroporto, expondo-me a uma possível contaminação, e ainda sob o risco de ter meu voo cancelado, decidi alugar um carro e dirigir até minha casa, em Niterói. Com a ajuda da Chris – ela reservou o carro, verificou a condição das estradas e foi me acompanhando – retirei o veículo e peguei estrada. Não sem antes apavorar a atendente da locadora que, ao ver minha carteira de motorista do Estado de Nova York, soltou um “meu Senhor Bom Jesus”!
A viagem entre São Paulo e Rio de Janeiro também foi estranha. Elaborei um procedimento próprio para manipular o dinheiro nos pedágios (que, na minha opinião, deveriam estar com as cancelas abertas e os funcionários em casa). Só pegava o dinheiro e abria a janela com uma mão. O troco ia para um compartimento no carro que não era mais tocado. Álcool em gel depois de cada contato. Só parei uma vez para ir ao banheiro, num restaurante fechado. Tive que aproveitar uma árvore simpática no estacionamento.
Cinco horas de estrada depois, cheguei em casa. Ao abrir a porta, não pude abraçar Chris, assim como não a abracei nos dez dias seguintes em que cumpri uma auto quarentena para protegê-la. Minha bagagem, mochila e tudo mais que veio comigo cumpriram uma quarentena de 72 horas. Só então as coisas começaram a ser organizadas em seus lugares, se é que há algo que possa voltar para o lugar depois de tudo isso que estamos passando.
Muito emocionante o seu relato. O abraço do coreano me levou às lágrimas. Esse momento está difícil para todos, mas ainda bem que você conseguiu chegar em casa.
Que aventura irmão que bom que está em casa e bem! Um grande abraço.
Esse retorno para casa foi duro. Mas foi importante seguir o coração. Apesar dos pesares, nada melhor do que estar em casa ao lado dos seus ❤️ espero que o novo normal seja mais humano e cuidadoso com todos os seres que habitam o planeta. Beijo grande e espero revê-los em breve aqui em Recife 😘😘❤️ Mari