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O que é o PL das Fake News e por que ele ainda é pouco efetivo no combate ao problema [Mobile Time]

Apesar de a “questão das Fake News” parecer estar restrita ao universo político, os esforços de regulação às mídias sociais também têm grande impacto na economia e no ambiente de negócios nacionais. Está em tramitação no Congresso o Projeto de Lei 2630/2020, o PL das Fake News, que tem um impacto regulatório relevante para as aplicações de Internet no Brasil. O texto já foi aprovado pelo Senado e agora está em discussão na Câmara dos Deputados. Espera-se que os deputados proponham correções importantes para tornar a legislação mais equilibrada e efetiva a que se propõe.

O chamado PL das Fake News tem uma intenção nobre e bastante relevante para o contexto político atual. As mídias sociais e os programas de mensagens instantâneas se tornaram um campo de batalha da opinião pública, no qual foi transgredido todo tipo de limite ético. Com isso, o compromisso com a verdade e o debate racional foram substituídos pela manipulação psicológica através de mensagens sensacionalistas que se utilizam de narrativas parcialmente ou completamente falsas, as quais encontram na Internet um terreno profícuo para serem compartilhadas e difundidas. Que atire a primeira pedra quem nunca recebeu uma notícia pelo celular e não foi tentado ou tentada a repassá-la, pois parecia uma informação muito relevante para ficar só com você.

Porém, se conseguimos ilustrar o problema com situações do cotidiano, legislar sobre a questão é bem mais difícil. Isso porque é complexo estabelecer os limites e referências para definir verdade ou mentira, sem com isso cair no terreno arenoso da restrição à liberdade de expressão. Por isso é tão importante buscar uma legislação equilibrada que não ataque liberdades fundamentais e a democracia. Da mesma forma, a nova legislação não deve criar entraves que prejudiquem a inovação e o desenvolvimento de novos negócios digitais no Brasil.

Diversos especialistas concordam que o Brasil tem um bom ambiente regulatório para a Internet, que inclusive é referência para o mundo. Com a aprovação do Marco Civil da Internet em 2014, o País deu um passo importante nas definições gerais sobre a neutralidade da rede, a privacidade dos usuários de Internet, o limite à responsabilidade das plataformas e aplicações da Internet, e a garantia da liberdade de expressão na rede. Em 2018, outro passo importante foi dado com a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que incluiu o País no rol de democracias civilizadas que protegem os dados pessoais e a privacidade de seus cidadãos, enquanto constrói um ambiente regulatório claro para os empreendedores, que ganham segurança jurídica para atuação nesse mercado. Para alguns empreendedores isso pode soar contraditório, mas uma boa regulação, com regras claras para os agentes de mercado, que definam limites sobre suas práticas, necessariamente vai constituir um ambiente mais saudável, justo e competitivo para os negócios.

Infelizmente, até o momento o PL 2630/2020 não se mostrou uma proposta equilibrada. Esquece-se das ferramentas legais já estabelecidas que podem contribuir para combater o problema da desinformação no Brasil. O PL acerta em exigir mais transparência das empresas de mídias sociais e de aplicativos de mensagens, mas ao mesmo tempo viola a privacidade dos usuários ao exigir dessas empresas a guarda exagerada de dados pessoais para possíveis fins de investigação. Isso inclusive fere a legislação atual de Internet no Brasil, na qual o Marco Civil da Internet e a LGPD exigem que a guarda de dados pelas aplicações de Internet deve se limitar ao mínimo possível para prestação do serviço.

Preocupa também a imprecisão nas definições gerais da Lei sobre “contas automatizadas”, “contas inautênticas” e “rede de distribuição artificial”. Esses são conceitos que não são uniformes entre as plataformas, e não encontram um consenso sobre seu entendimento, tanto no mercado como na academia. Consolidar essa imprecisão numa lei vai trazer ainda mais insegurança sobre a legislação de Internet no Brasil. Pesquisadores da área apontam que o principal problema relacionado às Fake News é a operação de redes profissionais de desinformação, que se utilizam de técnicas marginais para subverter os algoritmos das plataformas e dar alcance de massa a sua mensagem. Essas operações custam muito, e uma das abordagens defendidas por especialistas é seguir o rastro do dinheiro para chegar a essas quadrilhas da desinformação. O PL das Fake News tem pouco a contribuir nesse sentido, pois não cria mecanismos efetivos que possam atacar o problema.

Talvez o mais grave equívoco na proposição da lei é anular o entendimento sobre separação de responsabilidade entre plataformas e produtores de conteúdo trazido com a aprovação do Marco Civil da Internet. No Brasil, uma plataforma intermediária não é responsabilizada pelo conteúdo que seus usuários publicam. Caso haja possíveis ilícitos na publicação, somente por decisão judicial esse conteúdo deve ser removido. A exceção fica para casos de “pornô de vingança” e pedofilia, que são sumariamente excluídos sem precisar da decisão de um juiz. Esse dispositivo tanto traz segurança para as plataformas, que se isentam de uma posição de curadores do conteúdo, como garante a liberdade de expressão dos usuários, pois assim políticos e outras pessoas públicas não têm o poder de usar sua influência para retirar do ar conteúdos que os desabonem. Portanto, a Seção IV do PL 2630/2020, que trata sobre “procedimentos de moderação”, é bastante perigosa, pois atribui um papel de curadoria às plataformas, e esse procedimento pode aprofundar as já profundas assimetrias de poder no campo da comunicação, limitando a liberdade de expressão e produzindo uma grande insegurança jurídica para plataformas digitais de todo tipo.

O melhor caminho conhecido até aqui para se enfrentar a desinformação é o de desarticular redes profissionais de promoção de conteúdo duvidoso com caráter claro de destruição de reputações, ou de inflar polarizações políticas para beneficiar figuras públicas. Cabe ao poder público utilizar-se das ferramentas aí dispostas para melhorar os mecanismos de investigação para identificar as pessoas e organizações que lucram com a desinformação e puni-las. A legislação brasileira já tem os instrumentos civis e penais para isso. Órgãos de polícia judiciária, em cooperação com organismos internacionais, têm plena capacidade de rastreamento de recursos utilizados para manter essas estruturas. Uma lei que aprimorasse esses mecanismos seria mais eficiente do que uma lei que tenta “taguear” os usuários da Internet, enquanto acaba confundindo vítimas com criminosos no compartilhamento incauto de mensagens.

A desinformação é um problema sério e mundial. Diferentes países estão buscando enfrentar o problema, que demanda uma abordagem multissetorial para sua definição e resolução: empresas, governos e cidadãos juntos para construção de um ecossistema de informação mais saudável, que privilegie o debate público, o diálogo para o entendimento, e desafaça polarizações. Um exemplo de esforço nesse sentido é a Coalizão de Direitos da Rede, uma organização que reúne atores da sociedade civil para acompanhar esse e outros debates. Espera-se que a Câmara dos Deputados ocupe o mesmo protagonismo parcimonioso que adotou quando debateu o Marco Civil da Internet. Ao incluir diferentes setores e ter uma escuta atenta da sociedade, pode produzir uma das melhores legislações para a Internet no mundo. O Brasil pode ser pioneiro mais uma vez nesse sentido, produzindo uma lei de combate à desinformação, que respeite o direito dos usuários enquanto ataca de forma eficiente o problema. Mas, para isso, é preciso ter uma leitura atenta da história e uma visão apurada do fenômeno para o futuro.

Original post: https://www.mobiletime.com.br/artigos/12/08/2020/o-que-e-o-pl-das-fake-news-e-por-que-ele-ainda-e-pouco-efetivo-no-combate-ao-problema/

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