Rafael Cardoso Sampaio, Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPR. Coordenador do grupo de pesquisa Comunicação Política e Democracia Digital (COMPADD)
Christiana Soares de Freitas, Professora Associada de Políticas Públicas da UnB. Coordenadora do grupo de pesquisa Governança, Estado, Regulação e Sociedade. Site: https://christianafreitas.com/geris/
Samuel Barros, Professor do Departamento de Ciência Política da UFBA e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (PósCom-UFBA)
Alejandra Nicolás, Professora da área de Administração Pública e Políticas Públicas e do Mestrado em Políticas Públicas e Desenvolvimento da UNILA
Marco Konopacki, Doutor em Ciência Política pela UFMG na área de Inovações Democráticas. Especialista em governo eletrônico e consultor de projetos de Transformação Digital e Participação Social
Desde a campanha para presidente, Lula aventou a possibilidade de um grande orçamento participativo (OP) digital como resposta ao orçamento secreto. Recentemente, houve boatos sobre a possibilidade de que o Planejamento Plurianual (PPA) também seja mais participativo e digital. E agora, novamente, surge a notícia sobre um OP nacional. A proposta vai ao encontro das primeiras medidas emitidas no final de janeiro pelo presidente: a criação do Sistema de Participação Social no âmbito da administração pública federal direta, assim como o sistema de participação Social Interministerial, no qual cada ministério contará com uma Assessoria de Participação Social e Diversidade.
Nesta seara, pesquisadores da Rede Democracia e Participação divulgaram uma carta aberta com três sugestões para retomar o marco participativo do governo federal. Duas delas referem-se à retomada e incremento de políticas participacionistas, nomeadamente conselhos de políticas públicas e conferências nacionais.
O texto também sugere que o orçamento participativo nacional seja descentralizado e mais conectado diretamente aos municípios. Enquanto avaliamos que essa ideia seja relevante e interessante, gostaríamos de defender a realização de um grande orçamento participativo nacional digital, resumida em 13 razões:
1. Exemplo para o mundo: Ainda são muito raras as experiências de OP digitais a nível nacional, especialmente quando se referem a países com uma extensão territorial como o Brasil. Novamente, o país poderia se tornar uma referência global na temática de participação. Essa medida converge com tentativas atuais do governo Lula de reinserir o país nas pautas da agenda internacional. Ademais, em termos regionais (i.e. América Latina), o Brasil já se destacacomo referência, podendo exportar os modelos já testados e implementados de participação digital.
Além de ser reconhecido mundialmente por experiências participativas – como o OP, os conselhos e as conferências – é importante relembrarmos que o Brasil já teve destaque na participação digital durante os governos do PT. A título de exemplo, no primeiro governo Lula,várias iniciativas digitais surgiram no Ministério da Cultura, organizando pontos de cultura e diferentes agentes da cultura em plataformas de deliberação. No segundo governo Lula foram fundamentais as diferentes consultas públicas digitais para a elaboração do Marco Civil da Internet. E no governo Dilma, novas consultas públicas digitais para a regulamentação da lei já aprovada do Marco Civil foram reconhecidas pelo seu sucesso. Isso sem mencionar uma série de outras iniciativas e experiências exitosas, como o Participa.br, o Dialoga Brasil e o Pensando o Direito.
2. Apoio de agências internacionais: Agências multilaterais internacionais, como Banco Mundial, BID, ONU, Cepal, Unesco etc., são financiadores e parceiros de experiências similares pelo mundo, além de serem instituições que geram rankings internacionais de medição de ferramentas e experiências de governo digital. Há também financiamentos específicos para governo e dados abertos, como os da Parceria para Governo Aberto (OGP), cidades inteligentes, inovação digital e temas próximos, que também se interessariam pelo projeto. Essas diferentes instituições e fundos poderiam ser interessantes para o financiamento e desenvolvimento de certos projetos nacionais, além de serem atores interessantes para divulgar o modelo do Brasil.
3. Fomento à inovação no governo: um OP digital a nível nacional não seria tarefa fácil nem em termos do desenho da participação e muito menos em termos do desenvolvimento técnico da plataforma a ser utilizada. Enquanto isso é obviamente um problema a ser resolvido, pode também representar uma vantagem.
Esse inovador sistema participativo digital precisa ser desenvolvido a partir da iniciativa governamental, angariando apoio de todos os atores interessados, desde representantes da sociedade civil a outros que também possam se beneficiar com a proposta. Ao sinalizar para a sociedade que ele será construído de maneira aberta, terá o poder de atrair uma ampla diversidade de pessoas e competências, tendo potencial para gerar valor público de forma significativa.
Uma vez que o governo dificilmente possui essas expertises em seu interior, será necessário trazer e capacitar uma série de especialistas em tecnologia de alto calibre, trazendo a inovação digital para o cerne do governo. Afinal, algo assim demandaria a criação ou captação de soluções inovadoras e seguras em vários níveis. Por exemplo, diferentes usos de inteligência artificial para análise de interpretação de insumos enviados por cidadãos e o uso de blockchain para garantir maior segurança, rastreabilidade dos processos e transparência das formas de votação.
4. Atualizar a burocracia: Enquanto alguma resistência institucional é esperada, também pode se esperar o incentivo a uma cultura mais digital, inovadora e participativa entre os servidores públicos. Para além do fomento à participação e seus benefícios para a democracia, podemos esperar que tais tecnologias, inovações, soluções e conhecimentos também possam ter um efeito positivo, a médio e longo prazo, para o desenvolvimento de instrumentos de gestão pública, para a melhoria da entrega dos serviços públicos e do governo digital como um todo.
5. Diminuição das ilhas do governo: O OP digital nacional demandará esforços significativos de coordenação e implementação e exigirá, também, uma forte cooperação intersetorial de vários ministérios do governo. Dificilmente um projeto de tal magnitude poderá funcionar sendo gerido por apenas um ou dois ministros. Ao exemplo do que acontece no orçamento participativo municipal, seria necessária a organização e cooperação interna tanto no nível político quanto burocrático. Se vier diretamente da vontade e, principalmente, da tomada de decisão política do presidente, torna-se algo factível.
6. Incentivo à cultura digital: Atraindo, fomentando e capacitando profissionais, haveria um incentivo à cultura digital no país. Estamos falando de trazer e desenvolver especialistas nas mais diferentes áreas da cultura digital, a exemplo de inteligência artificial, dados abertos, governo digital, blockchain, software livre, open source, bem como outras competências que talvez nem saibamos ainda que existem.
Muito provavelmente, poderiam ser realizadas parcerias e contratos com grupos, coletivos e mesmo empresas da área. Em outras palavras, não apenas big techs e companhias agregadas estariam desenvolvendo tecnologia de ponta no país. Algo semelhante aconteceu nos projetos e plataformas de “Cultura Digital”, no Ministério da Cultura, e, no “Pensando o Direito”, no Ministério da Justiça, durante os governos Lula e Dilma e o resultado foi o mais extraordinário possível para a época.
7. Estímulo à inovação digital fora do governo: enquanto atrai e capacita tais especialistas (ao mesmo tempo em que diminui a fuga de cérebros para o exterior), há boa chance disso gerar um efeito positivo para o mercado. Empresas, startups e similares de base tecnológica poderão se formar e consolidar no entorno de iniciativas digitais do governo, fomentando um mercado no qual o país está muito atrasado. No Reino Unido e Estados Unidos, temos mercados muito desenvolvidos de tecnologias cívicas, sociais e governamentais, que certamente podem ser desenvolvidos no Brasil.
8. Impulso e criação de redes cívicas diversas: assim como urge a necessidade de cooperação interna, um projeto de tal tamanho não funcionaria sem forte engajamento da sociedade civil, que precisaria participar na elaboração do formato da participação, do design da plataforma e todas as questões agregadas. Em outras palavras, os grupos que já se engajam nos conselhos de políticas públicas e nas conferências nacionais não precisam ficar de fora de tais discussões e desenvolvimentos. A questão é que mais grupos e interessados poderão ser agregados.
9. Combate à desinformação: o melhor antídoto para desinformação é o engajamento da população na produção da sua própria informação. Em Taiwan, durante a pandemia, a ação do governo para combater notícias falsas foi munir a população de ferramentas que facilitaram o acesso à informação. O uso inteligente da informação, apoiado por ferramentas que dialogam com o público, pode ajudar a politizar os envolvidos no processo participativo. Como já dito, as redes ativadas e formadas pelo processo também podem se transformar em multiplicadores de determinadas políticas públicas do governo e ajudar no combate à disseminação de informações falsas.
10. Promoção da pesquisa e cooperação com as universidades: Não só o mercado de trabalho em torno de soluções e tecnologias digitais será incrementado, mas as universidades e centros de pesquisa e desenvolvimento científico-tecnológico. Diversas tecnologias poderiam ser gestadas, desenvolvidas, testadas e concluídas em diferentes ramos da ciência e especialmente pelas universidades públicas, que já apresentam inúmeros projetos. Certamente, também podem ajudar no registro de patentes na área.
Tais instituições podem ainda ser fortemente acionadas por tal processo em todas as fases: elaboração do desenho, cooperação interna institucional, desenvolvimento tecnológico da plataforma e, claro, avaliação de tais ações. Além de, posteriormente, divulgar nacional e internacionalmente tais ações e tecnologias.
11. Expansão da participação digital em outras esferas: como sabemos, o Executivo Federal tem forte influência sobre as esferas municipal e estadual. Por sua magnitude, um OP digital certamente poderia influenciar a criação de outras versões menores pelo país. Se bem desenvolvida, a plataforma do OP nacional pode, inclusive, servir de base para essas outras experiências, como acontece com as ouvidorias e iniciativas de transparência. A exemplo do sugerido pelos colegas da Rede Democracia e Participação, o governo federal pode, inclusive, incentivar que OPs regionais sejam realizados, mas agora o faria pelo exemplo direto.
12: Criação de um clima de opinião positivo: além da possibilidade da divulgação internacional, uma iniciativa de tal calibre poderia criar um clima de opinião bastante positivo para o governo. Tanto o jornalismo político tradicional quanto os novos influenciadores digitais poderão ajudar a fazer uma grande divulgação e mobilização em torno do projeto. Se, por exemplo, regular as plataformas de redes sociais tende a ser um tema espinhoso e cheio de impasses e diferentes posições, a decisão dos cidadãos para o investimento do orçamento pode ser algo quase consensual, atraindo mais coberturas positivas para o governo.
13. Estímulo à educação tecnológica: A participação em um processo de orçamento participativo digital pode levar a um maior interesse e engajamento dos cidadãos em relação às tecnologias de informação e comunicação. Isso pode estimular a educação em áreas relacionadas à tecnologia e aumentar o nível de conhecimento e habilidades tecnológicas dos cidadãos, o que pode ter um impacto positivo no desenvolvimento de tecnologias mais avançadas no país.
Percalços, desafios e algumas cautelas
É claro que essas 13 razões têm um caráter otimista, uma visão de melhor cenário possível. Por óbvio, o avanço da discussão sobre os orçamentos participativos, aproveitando a fortuna crítica acumulada pelos pesquisadores brasileiros, pode nos ajudar a resolver dificuldades. Uma conexão adequada entre um desenho de participação, design de ferramenta digital, implementadores com expertise adequada, a ativação dos públicos interessados dentro e fora do governo, assim como uma devolutiva para a sociedade sobre o processo de participação são vitais para o sucesso.
Neste momento, os atores governamentais têm na discussão da forma institucional a ser adotada pelo orçamento participativo uma abertura para criar novos modos de cooperação para a resolução de problemas transversais. A título de exemplo, os diferentes ministérios e órgãos públicos poderiam ter no orçamento participativo digital uma oportunidade para criar uma institucionalidade que orientasse a tomada de decisão em relação ao investimento federal na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.
Como várias experiências de OP municipal no país, não iniciaram como propostas acabadas em seu formato, desenho e demais características. Aqui, também, poderia se iniciar com uma experiência piloto/teste com tomada de decisão num volume do orçamento reduzido a alguns setores estratégicos e sensíveis para a população de forma direta. Assim, o desenho institucional do OP nacional e digital poderia ser ampliado e aperfeiçoado à medida em que é implementado.
Da mesma forma, é preciso que o processo efetivamente atenda aos anseios da população, sendo transparente em seus procedimentos, limites e avanços, assim como garantindo informações de qualidade. De outra forma, os participantes poderão se frustrar e vários ganhos citados podem não ser alcançados.
Enquanto alguns jornalistas afirmam que um OP pode ser uma forma de pressionar deputados para desistirem de emendas ou para impulsionar certas agendas no orçamento, a literatura também evidencia resistência do Legislativo a iniciativas do OP. Se não for bem executado e mesmo negociado, uma iniciativa dessas poderia acirrar de modo significativo as relações entre os poderes.
Também, é claro que semelhante projeto exige várias precauções. O Brasil é um país de tamanho continental e com grandes disparidades sociais, o que inclui diversos níveis de desigualdades digitais no acesso e uso de tais tecnologias. Medidas e cuidados seriam vitais para lidar com essas questões ou o governo pode ser facilmente acusado de privilegiar certos grupos ou, ainda, de excluir boa parte da população do processo participativo.
Por último, o sentimento antipolítica, a polarização e a resistência do bolsonarismo não podem ser ignorados. Assim como as redes sociais digitais, diversos problemas podem ocorrer no interior de uma plataforma desta natureza, como fakenews, trollagens e discurso do ódio. Se não houver cuidado, vários dos efeitos positivos apresentados anteriormente podem não apenas não acontecer, mas seguir em direção oposta. A título de exemplo, a agenda positiva poderá facilmente se tornar uma agenda negativa.
Conclusão (ou ainda, uma razão fundamental)
13+1 Formação de uma cultura política democrática. A discussão, deliberação e votação em torno de questões que dizem respeito à vida comum são habilidades necessárias para um exercício pleno da cidadania democrática. Um orçamento participativo digital nacional é oportunidade para engajar as melhores energias de cada indivíduo em questões que dizem respeito a todos. O próprio processo coloca o cidadão na condição de agente do processo de tomada de decisão, o que estimula a busca por informações sobre as questões, a ponderação quanto às capacidades estatais e a responsabilidade da própria sociedade diante de cada um dos temas. Em suma, desenvolve uma cultura política ativa com as habilidades necessárias para a cidadania no século XXI.
Em um momento em que as democracias são desafiadas por todo tipo de autoritarismo, inovações que aproveitem o melhor da tecnologia de nosso tempo podem contribuir para o fortalecimento da soberania popular. A história do estado e da democracia está marcada pela inovação para segurar as forças do arbítrio: a divisão dos poderes, a representação política na forma dos parlamentos, entre outros. Os desafios do nosso tempo, que surgiram com usos danosos das tecnologias digitais, podem ser enfrentados com aplicações digitais bem desenhadas do ponto de vista institucional, tecnológico e político.
O futuro da democracia é digital.
Nota
Todos os autores são integrantes e pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD)
Texto originalmente publicado no Estadão.