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Políticas Digitais e Cultura Digital: Desafios e Oportunidades no Cenário Brasileiro*

* Artigo de blog elaborado com base na fala realizada durante o encontro do Lab Nómada no dia 5 de julho de 2025.

A cultura, em sua essência, molda nossas sociedades e reflete nossa condição humana. No século XXI, a crescente digitalização de todos os aspectos da vida impõe novos desafios e abre oportunidades sem precedentes para o campo cultural. Ferramentas e plataformas digitais se entrelaçam cada vez mais com as formas como produzimos, distribuímos e consumimos arte e conhecimento, impactando direitos fundamentais e modelos de negócio. Este artigo propõe uma análise sobre o panorama das políticas digitais no Brasil e suas implicações para a cultura. Vamos explorar três eixos centrais que dominam o debate atual: o Marco Civil da Internet e as discussões sobre a responsabilidade das plataformas; a Inteligência Artificial e seus efeitos sobre direitos autorais, desinformação e as big techs; e a urgência de uma Infraestrutura Pública Digital com recursos e identidade digitais. Nosso objetivo é lançar ideias para uma reflexão aprofundada sobre como podemos moldar um futuro digital mais equitativo e soberano para a cultura.

Marco Civil da Internet, Liberdade de Expressão e a Responsabilização de Plataformas

O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) é, sem dúvida, um dos pilares da governança digital brasileira, fortalecendo princípios como a neutralidade de rede, a privacidade e a liberdade de expressão. No entanto, o debate recente em torno da constitucionalidade do Art. 19 trouxe à tona questões cruciais. Este dispositivo visava garantir a liberdade de expressão ao isentar as plataformas da responsabilidade sobre conteúdos de terceires, delegando ao Judiciário a prerrogativa de decidir sobre a remoção de material considerado danoso.

Esse modelo funcionou eficazmente até o surgimento e a expansão das mídias sociais, que, impulsionadas por algoritmos de promoção de conteúdo, tornaram-se vastos campos para a difusão de estratégias de comunicação digital. Contudo, essa mesma dinâmica acabou por facilitar a promoção de conteúdos criminosos, desinformação e violações de direitos fundamentais. A discussão sobre o Art. 19 busca, essencialmente, delimitar a extensão da responsabilidade das plataformas na disseminação desses conteúdos, que, em muitos casos, alcançam um público massivo, gerando conflito com seus próprios modelos de negócio.

Para o campo da cultura, as consequências são ambivalentes. Por um lado, um ambiente de comunicação mais equilibrado pode favorecer o alcance de narrativas culturais na rede. Por outro, há o risco de as redes sociais assumirem um poder excessivo de curadoria e julgamento sobre o conteúdo postado. Casos como a remoção de uma fotografia postada em 2016 pela Secretaria de Diversidade Cultural do MinC, de uma pessoa indígena com o tórax exposto, sob a alegação de nudez pelo Facebook, podem se tornar mais frequentes, limitando a liberdade artística e a representação cultural.

É imperativo que o Brasil desenvolva uma legislação clara que delimite a responsabilidade das plataformas, estabelecendo limites que assegurem tanto a liberdade de expressão quanto a equidade no direito à comunicação no ambiente digital.

Inteligência Artificial: Modelos de Negócio, Direitos Autorais e Desinformação

O avanço da Inteligência Artificial (IA) levanta questões complexas, especialmente no que tange à remuneração de autores de obras que são utilizadas para treinar modelos de IA. Além disso, surgem desafios sobre a autoria e os direitos de novas obras criadas com o uso de IA, em um cenário onde a produção de fotos, músicas e vídeos com IA generativa se tornou barata e de qualidade razoável. O PL 2338/23, atualmente em discussão na Câmara, aborda o tema, e recentemente artistas e associações de classe conseguiram a aprovação de uma audiência pública para discutir os impactos da IA no setor cultural.

Este debate não é trivial, pois envolve a redefinição de conceitos estabelecidos de produção e remuneração cultural. Abrange também discussões sobre direitos culturais, soberania de dados e justiça de dados, considerando que a alimentação desses grandes bancos de dados, usados para treinar os modelos de IA, muitas vezes é enviesada e pode reproduzir desigualdades históricas. Por isso, a regulamentação nesse campo deve se basear em três pilares essenciais: a transparência das fontes de dados e do treinamento dos modelos (explicabilidade dos modelos); a rastreabilidade dos dados utilizados; e a autonomia das pessoas na parametrização desses modelos.

Infraestrutura Pública Digital e Recursos Públicos Digitais

A intensa digitalização de todas as esferas da vida, e a consequente plataformização de nossas existências e formas de expressão por grandes empresas privadas do norte global, tornam crucial que a cultura se aproprie dos recursos digitais. A Cultura Digital é um campo de disputa fundamental para todo o setor. No Brasil, tivemos avanços significativos nessa área entre 2003 e 2016, tanto do ponto de vista conceitual quanto prático. Contudo, com a retomada das políticas culturais no Brasil, observa-se um avanço tímido nesse debate, tanto por parte do Estado quanto da sociedade civil.

É fundamental que entremos na disputa política por recursos e infraestruturas digitais para estabelecer meios para a emancipação e soberania de nossos fazeres culturais. Isso se traduz, concretamente, na disponibilidade de máquinas e recursos computacionais que possam ser livremente apropriados pelo campo cultural. Além de equipamentos, é essencial pensar em protocolos para o compartilhamento de nossa fruição cultural por meios digitais.

Imagine artistas e fazedores de cultura circulando suas obras e obtendo remuneração justa sem depender de grandes plataformas de distribuição, como os serviços de streaming. Tecnicamente, é possível estabelecer modelos mais colaborativos para o consumo de bens culturais digitais. Contudo, o modelo fechado atual — uma “fórmula” encontrada pela indústria para a remuneração — torna a adesão a esses modelos uma decisão de economia-política.

Pensando em formas de inovação política neste campo, o Estado pode atuar como indutor de um ecossistema digital que distribua recursos que possam ser arranjados e rearranjados de diferentes formas pelos atores nesse ecossistema, com foco na autonomia e equidade no acesso. Isso fortaleceria a liberdade criativa, unindo formas tradicionais e modernas de expressão cultural.

Novas Políticas Digitais e Laboratórios de Inovação

O coletivo Soylocoporti exemplifica como o espírito jovem de experimentação e o desejo de construir uma integração latino-americana podem gerar iniciativas culturais que transcendem fronteiras econômicas e políticas. Suas ações, utilizando arte-mídia, estratégias digitais, e formulações no campo das políticas culturais e de cultura digital, demonstram o potencial da cultura como vetor de articulação e mobilização.

O Soylocoporti é um dos organizadores do Laboratório de Cultura Digital (LabCD), uma iniciativa articulada entre a Universidade de Brasília, a Universidade Federal do Paraná e o Ministério da Cultura para atuar nas seguintes frentes de trabalho:

  • Letramento Digital para a Cidadania Cultural: com o objetivo de promover a apropriação das ferramentas digitais a partir de uma reflexão crítica sobre seus usos, desvelando as consequências tecnopolíticas relacionadas ao seu desenvolvimento e aplicação. No médio prazo, a massa crítica de agentes culturais apropriada das novas tecnologias digitais, permitirá a governança sobre o uso dessas ferramentas, assim como influenciar a construção de normas e diretrizes digitais.
  • O Laboratório de Cultura Digital (LabCD) atua na interseção da educação popular e da linguagem simples para empoderar agentes culturais e democratizar o acesso às políticas digitais. Utilizando metodologias replicáveis inspiradas na educação popular, o LabCD capacita comunidades e grupos a compreenderem e influenciarem as políticas culturais no ambiente digital. Isso se concretiza através da criação de conteúdos em linguagem simples, que desmistificam o universo digital, tornando os processos de elaboração e acesso a recursos e políticas mais acessíveis e compreensíveis para todes, consolidando a linguagem simples como ferramenta essencial para o letramento digital e a participação cidadã.
  • Soberania Digital: Expandindo sua atuação na promoção da soberania digital, o Laboratório de Cultura Digital (LabCD) estabelece uma parceria estratégica com o Centro de Computação Científica e Software Livre (C3SL). Essa colaboração visa fortalecer a autonomia e o controle sobre os recursos digitais, fundamentais para que agentes culturais e comunidades possam desenvolver e gerenciar suas próprias infraestruturas e ferramentas. Juntos, LabCD e C3SL buscam criar alternativas abertas e acessíveis às grandes plataformas, incentivando a construção de bens comuns digitais e garantindo que a cultura digital floresça em um ambiente de liberdade e equidade.

Assim como o Laboratório de Cultura Digital, outros laboratórios de inovação emergem como espaços cruciais. O Laboratório de Inovação Cidadã, o Laboratório Nómada, dentre tantos outros têm o potencial de expandir a rede de debates sobre como as políticas digitais afetam as políticas culturais e a cultura em sentido lato sensu.

A experiência do Soylocoporti nos convida a sonhar com uma América Latina mais unida pela cultura, e um laboratório de cultura digital oferece um meio prático para essa visão, capacitando artistas, educando comunidades e simplificando o acesso às oportunidades digitais. Acreditamos que é crucial pensar em uma Inteligência Artificial pautada no coletivo e no pensamento crítico, onde o conhecimento seja construído de forma colaborativa, em contraposição lógica individualista e “bancária” da IA, em uma leitura atualizada sobre o pensamento de Paulo Freire. Iniciativas da sociedade civil, nesse campo, devem priorizar as visões coletivas e comuns em contraposição a individualização e o egoísmo para os quais a tendência dominante, incoporada pelas grandes empresas de Tecnologia da Informação, aponta.

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